domingo, agosto 20, 2006

Pernas compridas

Havia alguns anos que aquilo sempre acontecia durante certos períodos. Suas pernas cresciam alguns metros a cada dia, impossibilitando-o que saísse de sua casa. Era penoso passar agachado pela porta, com os joelhos roçando as orelhas. Depois, entrar no elevador sem que seu joelho descoordenado solicitasse a parada em muitos outros andares ou as outras pessoas dentro do elevador se enroscassem com metros pernas. Muitos preferiam as escadas. Para entrar no carro afastava para trás seu banco, mas seus joelhos alavancavam a setas, apertavam a buzina ou entortavam o espelho retrovisor. Quando elas atingiam muitos metros, uma ia por fora, pela janela, e a outra se contorcia para atingir os pedais. Não podia freqüentar lugares públicos, pois as cidades não possuem uma infra-estrutura que comportem as necessidades de quem tem pernas compridas. No cinema tinha de se sentar na cadeira do meio da fileira e estender suas pernas pelos corredores paralelos, derrubando várias vezes o lanterninha ou os espectadores que derramavam coca-cola em suas canelas e sapatos. É certo que nas danceterias as pernas compridas lhe garantiam inusitados passos de dança, mesmo nunca tendo uma parceira pra dançar, além de sempre ser expulso por ocupar todo o espaço para a diversão dos que têm passos pequenos. No futebol sempre era tirado do time por infringir com freqüência a regra do impedimento. Perdia alguns minutos em frente ao espelho ensaiando diminuir as pernas. Agachava-se e escondia parte das enormes pernas dentro da camisa, mas nem mesmo ele se convencia do disfarce de pernas pequenas. Desistia de sair de casa para não levar golpes de rasteira. O tombo era cada vez mais alto. E doloroso. Antes de dormir abria as portas do guarda-roupas para que as pernas, que cresciam enquanto dormiam, tivessem espaço para se acomodarem melhor. Quando o guarda-roupas não suportava mais tanto volume, dormia com elas atravessadas pela janela do quarto e dias depois elas já alcançavam os andares inferiores e chegavam ao jardim, onde as crianças do condomínio usavam as canelas como escorregador. E elas se divertiam e seus pais ainda mais, porque suas pernas não cresciam, então riam de quem as tinha compridas. E assim ensinavam a seus filhos. Não havia forma de cessar o crescimento das pernas que não serrar, em casa, sozinho, metros e metros de suas pernas todos os dias. Apesar de serem muitos metros de pernas dispensados diariamente, era preciso serrar milimetricamente cada pedacinho de suas pernas, por horas, à medida que iam crescendo. E doía. Doía.

1 Comments:

Blogger Sussy Côrtes said...

Eh... Pode até não se achar bom no palavrório, mas no escrivinhatório não tem como negar!

2:05 PM  

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